Foi numa conversa de sala-de-estar que surgiu a discussão: Porque é que as estudantes residentes nos alojamentos universitários dos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra (SASUC), ao abrigo das suas regras superiores, possuem obrigações diferentes das que respeitam aos estudantes de género masculino?
Existiu, em tempos, abrigada na omissão de regulamentos ou normas, uma discriminação (negativa?) entre estudantes homens e estudantes mulheres alojados(as) em Residências Universitárias (RU) na Universidade de Coimbra. Essa discriminação consistia na diferente obrigação para com as tarefas desempenhadas por estes estudantes beneficiários de um apoio: as raparigas limpam os espaços comuns das residências onde moram... os rapazes não.
Talvez a ideia fosse a de que as raparigas – estudantes – possuem super poderes capazes de ajudar as suas homólogas funcionárias (sim, porque, confesso, nunca vi um funcionário da limpeza, sem contar com oficinas automóveis, onde tudo fica limpo com um bom pano encharcado em óleo) a levar a cabo o dificílimo trabalho que é pegar numa esfregona e num balde... e lavar o chão. Ou talvez, pelo contrário, seja uma perspectiva de inferioridade mecânica dos rapazes, cujas capacidades intelectuais, de tão elevadas, tornam-se um tanto ou quanto limitadas e não lhes permitem distinguir entre um lava-louças limpo e um sujo, e qual o método científico vigente para exterminar bactérias de um prato ou de uma colher. Não será por acaso que as RU Masculinas construidas durante o Estado Novo possuíam cozinhas extremamente pequenas.
A verdade é outra, infelizmente. A visão da sociedade que transforma a mulher na fada do lar é a aquela que fez (faz?) com que tal distinção surgisse como “natural”: é normal que a mulher saiba cozinhar, passar a ferro, manter uma casa limpa e confortável; do mesmo modo que seria “normal” que um homem conduzisse, lê-se o jornal e chegasse a casa com o jantar na mesa, pronto a servir. É esta sociedade que estabelece a diferença de géneros, entre as competências que uns devem ter, que umas nunca terão, e vice-versa.
E assim se chegava a uma Residência Universitária, provavelmente oriundos(as) de terras diferentes, distantes, sem o apoio de familiares, muitas das vezes conhecendo ninguém, partilhando um quarto com um(a) desconhecido(a), num mundo de hierarquias ditadas pelos(as) veteranos(as), em que as primeiras reuniões se distinguiam por uma coisa: tabelas/escalas/listas de limpeza. Para os rapazes estas certamente não existiam; para as raparigas sim.
Ao longo dos anos os pormenores mudavam sub-repticiamente: umas vezes as raparigas usufruíam da “ajuda” das funcionárias para os encargos de asseio; outras vezes recebiam um suplemento na bolsa de estudo, uma modesta quantia que compensasse o seu bom trabalho; outras ainda, em que nem recebiam ajudas “funcionais” nem “monetárias”.
Todos estes aspectos contribuíram para que a discriminação nas tarefas de limpeza não só aumentasse, como se enraizasse, a ponto de ouvir rapazes alojados em RU dizer «Eu ando na Universidade para tirar um curso, não é para limpar!». Pois é. Surge a pragmática questão: Então e as raparigas que estudam no Ensino Superior, não estarão lá, igualmente, para tirar um curso? Ou estarão lá, somente, para limpar? E, já agora, como o conhecimento não ocupa lugar, aproveitam e aprendem umas coisitas...
De há uns tempos para cá, estes acontecimentos têm sido sujeitos a pequenas particularidades: foram construídas RU relativamente recentes, cujos alunos(as) que nelas habitam, desde o início, foram confrontados(as) com a “Secção de Limpezas”. Quer rapazes, quer raparigas fazem parte de um método organizativo e, principalmente, inclusivo, para a mais adequada forma de manutenção do asseio nos espaços comuns – salas, cozinhas e casas de banho. Para os(as) mais desleixados(as), parecem existir as mais criativas formas de resolução de problemas, como por exemplo: as multas.
Quanto às Residências da Alta, mais antigas e conformadas, masculinamente falando, ou, em casos de residências unicamente femininas, por vezes, ignorantes da injustiça a que eram sujeitas as RU com Alas feminina e masculina, tudo se ia mantendo na mesma. A indignação crescente das estudantes que semanalmente provavam o sabor amargo da exclusão levou a que, mais do que uma RU aproximadamente no mesmo espaço de tempo, entrasse em contacto com os SASUC para contestar a situação.
A resposta que lhes era dada – a de que estavam a ser reunidos esforços para regulamentar a situação de igualdade intrínseca entre estudantes residentes; de que já estavam a falar com as RU Masculinas para as “familiarizar” com a situação, «porque sabem, é uma tarefa com a qual eles não lidam muito bem, temos de ir com calma...» - não as contentava.
Sucessivas reuniões de Delegados(as) deram voz à discussão, junto dos responsáveis pelo Pelouro da Acção Social da AAC, junto do Administrador dos SASUC, aquando da discussão pública do Regulamento para as RU e, também, de perto com o Provedor do Estudante. Reivindicação essa partilhada, bem de perto, pela Plataforma de Residências da Universidade de Coimbra. A opinião unânime de que era inadmissível que a situação discriminatória, não só entre os géneros dos residentes, mas também, entre as próprias residências, fosse alimentada nos dias de hoje, divergia quanto às soluções propostas – para os estudantes, o ideal seria a não (pre)ocupação com as lides domésticas; para os SASUC a contratação de mais funcionárias seria impossível.
Por fim, em Setembro de 2010, com a aprovação do Regulamento das RU da UC, o n.º 1 do artigo n.º 8 – Limpeza dos quartos e espaços comuns – deixa bem claro: “Os residentes devem zelar pela conservação e limpeza do quarto e equipamentos postos à sua disposição, sendo a sua limpeza da responsabilidade de cada um dos seus ocupantes.”, pelo que a solução encontrada pelos SASUC para a não sobrecarga das tarefas nos estudantes será que os primeiros “procedem à limpeza profunda de áreas comuns com periodicidade quinzenal”, segundo a primeira parte do n.º 3 do referido artigo.
Faz, no final de Março, um ano que se abriu portas às tentativas de resolução desta controvérsia. Está na altura de fazer um “pré-balanço”: O que é que mudou no comportamento dos estudantes a quem diz respeito a limpeza das RU?